
O Brasil está às vésperas de mais uma eleição. No próximo dia 5 de outubro, os eleitores vão às urnas escolher seus representantes no poder executivo – presidente e governadores – e legislativo – senadores e deputados. Há vinte anos, as urnas eletrônicas substituíram as cédulas de papel, e trouxeram celeridade ao processo de apuração dos votos.
Mas afinal, como funciona o processo eletrônico de votação? Até que ponto ele é confiável? O professor associado da FGV DIREITO RIO, Silvio Meira, fez uma análise desse sistema e deu sugestões de como ele pode ser aprimorado para as próximas eleições.
Como você avalia o sistema eletrônico de votação?
O problema do sistema eletrônico de votação é que temos uma urna que impossibilita qualquer tipo de auditoria externa durante ou depois da eleição. Seja lá o que acontecer, aconteceu. Mais preocupante do que isso é uma falha estrutural, sistêmica, em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), do ponto de vista da eleição, exerce o poder executivo, legislativo e judiciário, ou seja, ele emite a regra, ele executa e se você tiver alguma dúvida ou contestação, ele que decide.
Como resolver esses problemas?
A proposta fundamental é, primeiramente, por fim ao totalitarismo eleitoral. O TSE é o único órgão da democracia brasileira que é ao mesmo tempo legislativo, executivo e judiciário. Boa parte da falta de discussão sobre segurança e transparência do processo eleitoral eletrônico como um todo ocorre porque o órgão que seria o judiciário da eleição está comprometido com o executivo da eleição, pois ambos os poderes são representados pelo mesmo órgão. O que não dá espaço para discussão. A segunda coisa é dar mais transparência no processo eleitoral. Ninguém vai exigir que todos escrevam o software da urna eletrônica assim como não é exigido que alguém escreva a Constituição. Mas a Constituição é aberta, eu vejo, eu consigo entender. E tem um número muito grande de agentes da sociedade civil que entende, questiona, propõe, debate, discute e disputa a Constituição. A gente tem que ter esse nível de transparência no sistema eleitoral como em qualquer outro sistema. Você não pode ter sistemas democráticos opacos. Sistemas democráticos devem ser transparentes.
A urna eletrônica é segura?
A urna é parte do sistema eleitoral. É o ponto de entrada dos votos. O problema que temos com a urna hoje é que ela é obscura. Ou seja, a sociedade não sabe como a urna funciona. Podemos arguir que a sociedade deveria saber, pois a urna, assim como o sistema de totalização dos votos, devia ser um sistema transparente, pois é a base da representação democrática. Existe uma demonstração feita pelo professor Diego Aranha, atualmente na Unicamp, de 2012, que comprovou que a sequência dos votos poderia ser descoberta, ou seja, que o sigilo do voto poderia ser quebrado. Pode haver inúmeras outras falhas no processo. Pode haver falhas de computação dentro da urna, de totalização externa, de apuração. O problema é que nos não sabemos quais são as falhas e nós não podemos aceitar, do ponto de vista sistêmico, o que chamamos de segurança por obscuridade, ou seja, acreditar que o sistema é seguro por que ninguém sabe com o ele funciona. Esse tipo de preceito de segurança não é aceito, por exemplo, por bancos. Não há nenhum dedo apontando para uma falha objetiva do sistema, pois essas evidências não existem. Mas também não temos evidências ao contrário: não temos nenhuma indicação de que o voto é seguro, correto , que eu vou efetivamente ter o voto depositado na pessoa que a minha intenção de votar determinou. Nós não temos essa segurança, essa transparência.
O que fazer para as próximas eleições?
A primeira alteração é estrutural. O TSE não tem que executar a eleição, ele não tem que cuidar da urna, da apuração, que é a execução da eleição. O sistema de votação eletrônica brasileiro deveria ser tratado por uma entidade à parte, que obviamente deveria ser o executivo eleitoral. O TSE deveria ser parte do processo eleitoral, mas seu papel deveria ser estritamente judiciário. O que queremos é transparência do processo e isso não é coisa absurda de se pensar. A gente deveria se pensar como uma sociedade que detém os meios tecnológicos, os meios para investir em transparência do processo eleitoral... e o Brasil detém ambos. Não é uma coisa absurda pensar em transparência do processo eleitoral e ela, quando acontecer, não vai mudar significativamente o sistema. Descentralização e transparência são absolutamente essenciais para que nós possamos levantar qualquer tipo de sombra que alguém possa tentar jogar sobre o sistema eleitoral brasileiro. A nossa experiência como cidadãos e como instituições mostra que, no caso de software, que cria universos virtuais extremamente complexos e com inúmeros pontos de falhas, susceptíveis a ataques e suspeitas de todos os tipos, devemos abrir os sistemas à auditoria externa, a tentativas externas de tentar prová-lo errado. E assim, testando as múltiplas facetas do sistema, testando com gente independente, consegue-se identificar um número muito maior de falhas do que as que são descobertas pelo grupo que o criou. É assim que se aumenta ao mesmo tempo a qualidade e a corretude de qualquer sistema de software (e hardware). E é exatamente isso que precisa ser feito, o quanto antes, no Brasil..
A população deve ter medo de votar?
Não acho que precisamos ter medo de votar. O que é preciso dizer é que ninguém sabe o que acontece depois que você deposita seu voto na urna. Você tem que crer nas declarações de um conjunto de pessoas de que tudo funciona da maneira que deveria funcionar, mas não existe uma avaliação independente de que esse seja o caso. A eleição poderia, não só poderia como deveria, ser muito mais transparente do que ela é.