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Silvana Batini é professora da FGV DIREITO RIO e Procuradora Regional da República. No último dia 10 de setembro, ela acompanhou a decisão da Segunda Turma Especializada do Tribunal Regional Federal que reabriu a Ação Penal que apura o desaparecimento e morte do ex-deputado federal Rubens Paiva. Foi a primeira vez que a justiça brasileira reconheceu como crimes contra a humanidade os atos praticados por membros do exército durante o regime militar.
Em entrevista para a FGV DIREITO RIO, a professora explica o porquê dessa decisão e como esse caso pode vir a influenciar as decisões futuras de casos semelhantes ao de Rubens Paiva.
Por que o caso do ex-deputado Rubens Paiva foi considerado um crime contra a humanidade?
A ação penal que apura o desaparecimento e morte de Rubens Paiva foi proposta dentro de um contexto maior que é o grupo de trabalho montado pela Procuradoria Geral da República para justiça de transição. Procuradores da República no Brasil todo têm trabalhado no levantamento de dados desses casos de crimes praticados na época da ditadura e estão oferendo denúncias. Então foram várias as denúncias, o (caso) do Rubens Paiva não é o único ao qual foi imputado essa classificação (de crime contra a humanidade), mas foi o primeiro em que teve este reconhecimento feito pelo tribunal. Até agora ou as denuncias estão sendo recebidas e reconhecidas como crime contra humanidade em primeira instância, mas o tribunal em segundo grau derruba ou então nem são recebidas em primeira instância. No caso do Rubens Paiva foi recebido em primeira instância, o juiz da causa reconheceu que se tratava de um crime contra a humanidade e o Tribunal Regional Federal ratificou essa ideia. Os cinco militares estão sendo julgados por homicídio, ocultação de cadáver e formação de quadrilha.
Como esse caso pode influenciar os demais julgamentos?
Essa é uma decisão que não tem cunho vinculante, inclusive não é uma decisão definitiva. O que aconteceu foi que os militares denunciados por morte e ocultação de cadáver de Rubens Paiva que estão respondendo uma ação penal na vara federal criminal do Rio de Janeiro entraram com o pedido de Habeas Corpus e perderam no Tribunal Regional Federal. Outros casos não estão tendo a mesma sorte. Esse caso, a não ser do ponto de vista de ser uma decisão histórica, não vai vincular outras decisões.
Quais são os próximos passos?
O caso será levado ao Superior Tribunal Federal e a decisão final será sempre do Supremo Tribunal Federal.
Muitos juristas defendem que os crimes cometidos por militares anteriores a promulgação da Lei da Anistia não podem ser julgados ou condenados por esses crimes. O que pensa sobre isso?
O que eu penso e ficou expresso nesse julgamento que participei é a posição institucional do Ministério Público Federal hoje - aquela reconhecida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos onde o Brasil sofreu uma condenação no chamado caso Gomes Lund. A corte Interamericana disse que o Brasil não pode ter leis, inclusive a Lei da Anistia, que prevejam a extinção da punibilidade e prescrição de crimes contra a humanidade. Defendemos que esses crimes não estão acobertados pela Lei da Anistia. No caso do Rubens Paiva ainda tem um além, uma questão meramente técnica. Um dos crimes que estão sendo imputados é o crime de ocultação de cadáver. O crime de Ocultação de Cadáver tecnicamente é o que chamamos de crime permanente, como o corpo do Rubens Paiva até agora não foi encontrado então o crime continua em consumação. A Lei da Anistia previu a anistia para os crimes exauridos até 15 de agosto de 1979. Ocultação de cadáver é um crime que está acontecendo até hoje e, portanto, este crime estaria complemente fora da Lei da Anistia.
O que caracteriza um crime contra a humanidade?
Essa definição de crime contra humanidade não é uma definição doutrinária, interna, ela vem definida em documentos internacionais de que o Brasil é signatário. Um exemplo clássico é o Tribunal Penal Internacional que tem como crime contra a humanidade aqueles crimes que importam em graves violações dos direitos humanos e praticados num quadro de ataque generalizado ou sistemático contra a sociedade civil. Então a denuncia do crime contra o Rubens Paiva coloca a morte dele dentro de um quadro em que esses desaparecimentos, sequestros, mortes e ocultação de cadáver estavam acontecendo dentro de uma linha sistemática. Foi isso que o Tribunal Regional Federal da Segunda Região reconheceu.
As mortes de Rubens Paiva e do jornalista Vladimir Herzog são os mais emblemáticos do período da ditadura?
Sem dúvida que os casos do Rubens Paiva e do Herzog são alguns dos mais emblemáticos desse período. Todos os casos estão sendo levantados, temos que esperar para ver o que acontece com cada um. É importante saber que o Supremo Tribunal Federal hoje tem uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) em que ele vai ter que decidir isso de forma vinculante para o Brasil todo. Se esses crimes estão ou não estão acobertados pela Lei da Anistia. O importante é que essas ações que estão sendo propostas em primeira instância respeitem a decisão do Supremo Tribunal Federal e aguardem. E mais que isso, permitam a produção da prova. Porque o que está acontecendo com os processos que estão sendo abertos é que as provas testemunhais estão em grave risco de perecimento porque as pessoas estão idosas, doentes. Então se você não colher rápido, você vai perder.
Por que demorou tanto tempo para o Brasil rediscutir esse assunto?
O Brasil caminhou um pouco mais lentamente do que outros países da América Latina. Nós tínhamos essa historia com a Lei da Anistia como uma porta que tinha se fechado para sempre. E a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que foi em 2010, de uma certa forma reabriu essa porta e está obrigando o país a rediscutir esse assunto.
Recentemente teve um caso de um militar que recebeu um chamado da Comissão da Verade e se recusou a ajudar escrevendo “não contribuo com o inimigo”. Como você avalia esse comportamento?
Essas ações penais são importantes justamente por isso. Quando você denuncia o autor de um crime praticado nesse contexto da ditadura militar, você está abrindo a oportunidade para que os réus e testemunhas sejam ouvidas pela primeira vez no ambiente do processo penal que é o ambiente de contraditório e ampla defesa. Essas histórias já foram contadas do ponto de vista histórico, jornalístico, administrativo, mas nunca dentro do processo penal que é um ambiente, digamos assim, blindado de se produzir uma verdade processual e jurídica, ou seja a verdade do devido processo legal. Porque as pessoas vão ter preservada a ampla defesa e o contraditório. Então num contexto do processo penal uma testemunha não pode se recusar a ir depor, tem que ir, o réu tem direito ao silencio, mas a testemunha não. Se a testemunha intimada a comparecer ao processo se recusa, ela pode ser conduzida. Recusar-se a prestar um testemunho ou prestar um testemunho falso é crime. Cometendo esse crime, a pessoa deverá se sujeitar as penas da lei.